sábado, julho 28, 2018

1640. Fobias e almoços ou mais um LTB


V tem algumas fobias, é ele que o diz e eu não tenho como duvidar. Sei que a sua terapeuta e amiga MH conhece algumas, mas as que fazem parte do foro clínico privado, nem ela nem eu as divulgaremos. Dei-lhe a minha palavra. Mas há uma que me dá uma certa graça contá-la, espero que esta o V não a tenha como privada, pois falamos nisso abertamente e fora do âmbito clínico. E lembrei-me disto à hora do almoço, por isso incluí-la no meu LTB. Entrei num snack bar, (ainda se usa esta expressão?) com vontade de comer uma bifaninha e tomar uma bejeca, pedi ao balcão e o senhor solícito e amável, mandou-me sentar que já me atendia. Pelo caminho reconsiderei e achei que iria comer um prego no prato. E, depois da mesa posta, o senhor que há pouco estava ao balcão perguntou-me só para confirmar: É então uma bifaninha no pão e uma imperial, não é? E eu ripostei, Olhe traga-me antes um prego no prato com umas batatinhas fritas, não são das congeladas, pois não?, e uns pickles. E sim traga-me uma imperial. Isso vai demorar um bocadinho mais, informou-me. Não faz mal, respondi. E ali fiquei no bar praticamente vazio, o tipo do balcão que devia ser o patrão e que era também quem atendia às mesas e quem fritava as bifanas, grelhava os pregos e picava os pickles, uma boa meia dúzia de mesas à espera de clientes, um cão deitado no chão junto a uma das mesas, com ar de poucos amigos, assim de uma raça que não conheço, focinho achatado a parecer um tanque de guerra, pelo branco com manchas cinzentas, meio com ar adormecido mas que, na verdade, nunca tirou os olhos de mim. Pacientemente comi o meu prego, sempre, também eu, sem tirar os olhos do cão, num perfeito tête-à-tête,
 mas já com uma saída de emergência fisgada, não fosse o diabo tecê-las e eu à rasca, mas onde é que andará o dono do cão? E foi aí que me lembrei do V.

O V tinha a mania de mudar de emprego, como quem muda de camisa. Não que não se sentisse bem onde trabalhava, presumo que de algumas delas sente ainda hoje saudade, pela forma como fala das mesmas, mas achava sempre que podia não só aprender mais, mas também ser mais valorizado pelo trabalho e pela influência que tinha nas empresas onde trabalhou. Talvez nisto houvesse uma certa dose de narcisismo, mas ele era assim mesmo e a verdade é que, tanto quanto sei, foi sempre bem-sucedido nesta sua pretensão, ou melhor, nesta sua perspetiva de melhoria pessoal no mundo do trabalho. E dai que passava o tempo a responder a anúncios.

Entrou num prédio que, pressupostamente, deveria ter porteiro. O átrio era amplo, tinha um sofá em couro preto, sobre um pavimento de mármore branco, impecavelmente limpo. No balcão, em meia lua imperfeita, deveria existir um porteiro, mas ninguém estava para o atender. Um prédio que parecia deserto, silencioso, quase fantasma. E isso começou de imediato a incomodar V. Subiu ao quarto andar. Carregou no botão do elevador, esperou apenas alguns segundos, as portas abriram-se de par em par, V entrou num elevador todo em aço inoxidável, mais parecendo um elevador de hospital, vazio como era de se esperar, um painel de botões que ia até ao 12º, um subir absolutamente silencioso, num ápice no quarto andar. Tocou a campainha do 4º esquerdo, mas não ouviu o toque. Quase em simultâneo, um subtil click de abertura do trinco, a porta começou a abrir-se paulatinamente sem que ninguém lhe tocasse, V entrou, pediu licença sem obter qualquer resposta e só um novo click de trinco lhe fez notar que a porta se havia fechado nas suas costas. Levantou um pouco a voz, Boa tarde, onde me devo dirigir, mas aquele corredor frio e vazio, não lhe respondeu. Esperou, pelas suas contas duas horas, pela passagem real do tempo não mais de vinte segundos. Uma eternidade! Um senhor, alto, muito mais alto do que o 1m63 de V, trazia pela trela um imponente pastor alemão, de ar ameaçador, de dentes aguçados que fez o favor de mostrar num imenso bocejo. Falando um francês com sotaque de Bruxelas, o senhor que recebeu V, fê-lo entrar numa ampla sala, talvez uns quarenta a sessenta metros quadrados bem medidos, de decoração austera, dois sofás, um aparador, na parede dois quadros, uma pintura de Paula Rego e uma gravura quinhentista de um mapa-mundo de grande qualidade gráfica e riqueza de cores, com uma rosa dos ventos que só por si não deixaria ninguém indiferente à presença daquele quadro e escrito, se não em castelhano, em português arcaico daquele que só vê nos fac-simile das obras de Luís de Camões ou do padre António Vieira. V foi convidado a sentar-se, mas antes que a entrevista para o novo emprego começasse, o eventualmente belga e possível dono do pastor alemão deixou-o só com o seu portentoso animal em guarda. Passaram-se um, dois, três minutos, três anos? Para V, um século, as pernas tremiam-lhe, a serenidade abandonava-o, na rua não passava um carro, não passava uma senhora com o seu saco de compras no Corte Inglès ou na Loja das Meias, um executivo de gabardina e pasta na mão, um homem estátua que regressasse de um dia de estático mister, ninguém de quem se pudesse socorrer, ninguém a quem soltar um grito de socorro, se a sua fobia a cães e ao vazio o fizesse entrar em desespero. Ninguém. Só, numa sala com um cão.

Paguei a conta e saí. Seria igual se em vez de um prego, tivesse sido um bacalhau à Brás, uma económica em tijela de alumínio, dois rissóis e uma carcaça. Desde que a imperial estivesse fresquinha.

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