sexta-feira, fevereiro 01, 2019

1646. Eu não arrumo o tabuleiro




Não sou um utilizador da velha guarda das portagens de via verde. Não que não ache a tecnologia interessante, o processo muito cómodo e até hoje nunca fui fintado com faturas com valores que não correspondessem à minha utilização. Quando precisei de ir pessoalmente aos serviços fui sempre atendido com profissionalismo e simpatia. Mesmo quando me enganei e, por distração entrei numa cancela com via verde, foi fácil resolver o assunto e a penalização foi nula. No entanto, não fui, nem sou um aderente incondicional. Fui um resistente porque acho que a abertura de vias verdes e a sua utilização trás cá para fora uma parte importante do egoísmo que o ser o humano encerra em si. Porque em troca do comodismo, não importa que por cada corredor de via verde que abre são pelo menos três postos de trabalho perdidos. E isso é sempre problema dos outros. Eu fui resistindo, ficando estoicamente nas filas para as caixas de pagamento de portagens. E vivia muito bem com isso. Até que um dia me senti frustrado. Na portagem que eu mais utilizava no Alentejo, terminaram com os portageiros e substituíram-nos por pagamento eletrónico. Ou via verde ou cartões de plástico. Deixei de ter alternativa, mas o meu esforço não o senti inglório. Valeu o que valeu. É pela mesma razão que eu não coloco o tabuleiro nos carrinhos de recolha, quando almoço ou janto nos grandes centros comerciais. Há lá empregados e devem-lhe ser mantidos os empregos. Eu é que não sou empregado nem dos restaurantes, nem do consórcio que explora os espaços. E não preciso que me façam nenhum desconto especial para levantar o meu tabuleiro (esse desconto nem há) que nem assim eu arrumo o tabuleiro (*). Até ao dia em que despeçam todos os empregados e me multem se o não fizer. Mas já que não posso ir a pé nas autoestradas posso deixar de comer nos centros comerciais. A opção é minha.

(*) Por vezes abro uma exceção. Quando cedo o lugar a crianças ou pais com crianças. Nem sempre o empregado está por perto e é penoso ver os putos a fazerem o trabalho que lhes não compete.

Texto e foto ©Vítor Fernandes 2019

quarta-feira, janeiro 30, 2019

1645. Os atravessadores


Hoje vou escrever sobre os atravessadores. No meu quotidiano conduzo com frequência pela cidade. Quando ainda estava no ativo a minha condução era mais de casa para o trabalho e vice-versa. Como saía cedo e regressava tarde não me dava conta dos atravessadores. Às horas que potencialmente me cruzaria com eles, já ou ainda, não havia praticamente atravessadores. Mas os atravessadores não são uma raça única. Há muitas espécies de atravessadores. Por exemplo,

Os sinaleiros – mais minuto, menos minuto, eles vão atravessar. Apesar de estarem no local certo para atravessar a rua ou a estrada não o fazem. Nem sequer colocam o pé na passadeira. Fazem sinal com o braço para que os automóveis, as motas, os autocarros e até as bicicletas passem primeiro. Mesmo que o condutor pare para lhe dar passagem, eles recusam determinantemente fazendo por vezes o gesto de virar as costas à passadeira, do tipo, Estás a ver que eu não vou mesmo atravessar?  Só quando não vem trânsito, nem de um lado, nem de outro, eles atravessam. Mas atravessam sempre na passadeira.

Os tá bem, tá – colocam-se na passadeira, hesitam em colocar o pé na dita, mas fazem-no sempre com os olhos no condutor. Em ruas de dois sentidos só atravessam se no sentido contrário ao do automobilista que, entretanto, parou para que o atravessador atravessasse, não se vislumbre outro carro. Nem parado. Depois, quando parece estar tudo em segurança passa por detrás do carro que estava parado à espera que ele atravessasse, não vá o Diabo tecê-las.

Os espera aí – também esperam. Esperam sempre que o condutor pare. Entram a medo na passadeira e sempre com uma mão em posição de espera aí. Fazem todo o atravessamento com a mão nessa posição e, obviamente, a gente espera. Espera o atravessamento total como mandam as regras e como manda a mão do espera aí

Os diagonais – Para os diagonais a distância mais curta entre duas paralelas não é a perpendicular. Vão de um passeio ao outro em diagonal. Entram na passadeira para iniciar o atravessamento, mas ainda não chegaram a meio e já estão fora dela e continuam o atravessamento como um direito adquirido, fazendo mais de metade do percurso fora da passadeira. Vê lá se te despachas, pensam os tipos como eu, outros gritam-lhes mesmo pela janela:  É para hoje ou para amanhã? Quase sempre no formato Épra hoje ó prámanhã, caralho?

Os a prioridade é minha – São geralmente putos ou miúdas acabados de sair das aulas, quase sempre em grupo, iniciam o atravessamento como se a passadeira fosse a continuação do passeio, não olham nem para esquerda nem para a direita, Quero lá saber se o gajo me atropelar a culpa é dele, e a meio da passadeira ainda param para mais uma brincadeira, para dar um calduço a outro, para continuarem a cena de bullying ou simplesmente abrandam para darem um beijo à pita com quem vêm atracados desde o portão da escola.

Os Olá estás bom? (ou boa) – é uma espécie que tem um tipo de comportamento normalmente imprevisível, pois o condutor não adivinha que isso vai acontecer e raramente antecipa. O condutor de mota ou de bicicleta normalmente faz-lhes uma rasante, o do autocarro dá-lhes uma buzinadela de os fazer dar um salto de susto, cuja razão, a do motorista, claro, fica logo assegurada pelo comentário de dois ou três passageiros que não se coíbem de dizer Olha para aquela besta e outros impropérios mais ou menos pouco educados mas não muito malcriados pois vão outras pessoas a ouvir e os automobilistas soltam um tremendo foda-se. Eu não. Eu costumo dizer: já estava à espera desta: Mas não estava nada. Ah! Quem são eles? São os que a meio da passadeira ouvem chamar: Oh Rita!, olham para trás e lá está a Irene, a filha da tia Isaura florista que já não via há mais de uma semana, coitadinha, disseram-lhe que a mãe tinha partido um pé, ou Ó Jaquim, vais com pressa? e lá está o Ernesto no outro lado da rua com A Bola debaixo do braço  e, de repente, a meio do atravessamento voltam para trás para ir dar dois beijos à Irene ou um bacalhau ao Ernesto: Aquilo ontem é foi uma jogatana do caraças, pá! Ou então voltam para trás a meio do atravessamento apenas porque se esqueceram de comprar a linha na capelista, que faz falta para acabar o naperon logo à tarde.

Os corredores e o para arranca – Os corredores não atravessam nas passadeiras. Os corredores atravessam em qualquer sítio e mal veem o veículo aproximar desatam numa correria, sem olharem para a direita, sem saberem se vem lá outro, deixa é fugir deste e depois quando ouvem a buzinadela do outro que vem em sentido contrário, estancam de repente no meio da rua, pedem desculpa, desatam a correr de novo, cheios de artroses, uma mão no peito que o coração já não está para isso e ficam no lado de lá a respirar ofegantes e a limpar o suor com o lenço de mão, mas pronto desta já estou safo, para a próxima atravesso na passadeira que já não tenho idade para estas corridas.

Os pipis, os étnicos, as velhas com os netos pela mão, o tipo com a bengala – Nunca atravessam nas passadeiras. Mesmo que a passadeira esteja a menos de cinco metros, ou a menos de três. Os pipis, assim com ar de malandrecos como que a dizer ao condutor Eu atravesso onde eu quiser, pá, os étnicos que têm o direito conforme a etnia de atravessar fora das passadeira, porque o automobilista que ameaça não parar com certeza que é racista ou então se o étnico for outra também é racista e pior é que não grama ciganos, a avó que passa com o neto ou a neta pela mão e claro Eles que parem não veem logo que é uma criança e o velhote da bengala para quem aqueles três metros até à passadeira são um sacrifício do caneco.

Os passeantes – podem incluir-se aqui também os putos das escolas, mas não exclusivamente ou se calhar nem principalmente, mas também, normalmente sozinhos ou em par. Assim que entram na passadeira, que se lixem os gajos dos carros. Afinal não passam de uns burgueses de merda. Eles a cavalo e eu é que vou aqui a pé. Demoro o tempo que eu quiser e pronto. E pronto, digo, eu, lá vai aquele a passear na avenida.

Os tecnológicos – Hoje são quase todos e englobam também quase todas as categorias que estão acima referidos, exceto os corredores. Atravessam a passadeira ou fora dela com o telemóvel na mão. Vão a telefonar, a mandar mensagens, a consultar o Fb ou o Instagram, a jogar, mas caramba, não podiam fazer isso sem irem ao mesmo tempo a empurrar o carrinho do bebé?

Os normais – Ah pois, também há normais. Não os sei descrever porque nem dou por eles.

E aqui estão os atravessadores. Se encontrarem algum de uma espécie não descrita, avisem-me em que rua foi para eu ir lá visitá-los. Sou ávido de conhecimento.

domingo, novembro 11, 2018

1644. Convite

É só para informar as minhas amigas e os meus amigos de que na próxima 5ª feira, dia 15 de Novembro às 17h30, será apresentado, na Rua Ramiro Ferrão, nº 38 - Residência Nossa Senhora da Esperança do CSP Padre Ricardo Gameiro, o meu novo livro, desta vez um livro de contos, intitulado "Pero que las hay, las hay e outros sabores".




Estao todos convidados!

sábado, outubro 27, 2018

1643. O fuso

Os prós e os contras: As redes sociais estão cheias de opinativos sobre a mudança ou não da hora. Haver dois horários, um de verão, outro de inverno. Confesso que me sinto confortável com o atual status quo. O meu organismo não se costuma queixar. Dantes, quando eu tinha de acertar um a um os relógios, ainda aconteceu ter chegado uma hora atrasado a um almoço. Desde que casei que isso é o que acontece sempre, mesmo com os relógios a mudarem todos automaticamente. Smarts. Mas se quiserem que fique sempre a hora de inverno ou sempre a hora de verão, para mim também está bem. Ou seja, eu não sou um pró nem um contra. Sou antes o Pre.

quinta-feira, setembro 13, 2018

1642. Lunch Time Blog - Em ponto lula


A Maria José fez lulas de tomatada com arroz ao almoço e eu fiz uma omelete de frango para o jantar. As enormes e lindas lulas que ela esteve a arranjar ficaram bem pequenas no tacho e eu aproveitei o frango de churrasco que sobrou do almoço de ontem para desfiar e preparar a omelete. Não são pratos de extrema laboração, não poderiam concorrer no Master Chefe sob pena de termos de ir à prova de eliminação, mas o que conta é que estavam saborosos. Na omelete juntei um pouco de pimenta preta moída na altura, já que no churrasco de véspera não tinha sido usado nenhum picante. As lulas estavam no ponto, nem elásticas, nem a desfazerem-se, estavam num ponto, a que poderíamos designar por, não sei se existe ou não, ponto lula. A Charline, que é a nossa gata preta e branca com um bigode à Charlot, miou à nossa volta à hora do almoço, mas esteve sossegada ao jantar pelo que se pode deduzir que o prato confecionado pela Maria José estaria mais apelativo. Eu gosto mais de lulas recheadas, mas se a minha mulher o tivesse feito hoje corria o risco de no fim do cozinhado termos ingredientes recheados com lula, a não ser que tudo encolhesse na mesma proporção. O arroz estava soltinho como devia estar o que, com aquele molho da tomatada, ficou ainda mais gostoso. A omelete foi acompanhada por meia dúzia, poucas por causa do sal, de batatas fritas de pacote Lays gourmet compradas em promoção por metade do preço e uma salada de tomate coração de boi temperada com orégãos. Ah, é verdade, enquanto estive a descrever o que descrevi esqueci-me de dizer que o ministro Cabrita apresentou os sete pontos do governo para a descentralização, que o Putin anda a brincar aos espiões com os ingleses, que o tufão Florence se aproxima da costa sul dos Estados Unidos e que o vice presidente do Benfica deu uma conferência de imprensa por causa do roubo de correio eletrónico privado. Como não percebo nada de meteorologia um dia destes escreverei sobre trabalho precário, o que, não vem nada a propósito nestes LTB, pois é de ir à náusea. Entretanto, porque preciso de fazer umas análises ao fígado daqui a um mês e porque os meus diabetes andam um bocado malandrinhos, acompanhei as referidas refeições com água fresca e assim o farei às vindouras. Quando puder voltar a comer caviar logo voltarei ao champanhe. Mas para falar verdade, verdade, gosto mais de ameijoas à Bulhão Pato. Com champanhe, claro!

PS.  Aqui atrasado, farto de comer sopa, pedi à minha mulher que me fizesse faisão para o almoço. Estava delicioso. Comi três tigelinhas, com umas sopinhas de pão.

terça-feira, agosto 28, 2018

1641. Ser ou não ser Inácio

A indecência dos canais premium de desporto. Quando a Benfica TV (BTV) reduziu o número de canais de 2 para 1 deixando de transmitir jogos de campeonatos internacionais, nomeadamente de uma das mais competivas ligas da Europa, a Premiership, esperei que a BTV fosse oferecida aos seus espectadores por um preço mais baixo. Não o foi e eu não achei bem. Mas ainda assim dei de barato. Quem subscreve a BTV é maioritariamente benfiquista e se o continua a fazer, aliás como eu, é porque se lhe aplica o pensamento de Blaise Pascal de que o coração tem razões que a própria razão desconhece. 

Já à SportTV não me parece que lhe seja aplicável a mesma máxima. A SportTV, por principio, tem como clientes aqueles que querem ver vários desportos e modalidades, independentemente da sua cor clubista. Por isso, oferece um pacote, para mim e até há pouco, mas já lá vamos, a um preço razoável de menos de 30,00€ mensais, ou seja 1,00 euro por dia, que é o preço de um jornal diário desportivo, salvo erro ou omissão, pois que já há muito tempo não os compro, e que sob o meu ponto de vista, a tv, embora não não sejam diretamente comparáveis oferece um produto de melhor qualidade. Acontece que este ano a SportTV perdeu para a Elevens, mais um operador cabo para desporto, os direitos de transmissão dos jogos da Champions League e os jogos da La Liga, a liga espanhola de futebol. E não é coisa pouca atendendo a que, se calhar, La Liga é a melhor Liga Europeia e que a Champions League, também designada por Liga Milionária, é a que cobra aos operadores os mais elevados valores de direitos. Sendo assim, este ano, a SportTV poupará largos milhões de euros nos seus custos o que poderia/deveria ter uma correspondência no valor da oferta ao consumidor. Mas não teve. 

E isso faz-me pensar se não deverei telefonar ao Inácio a perguntar-lhe quais os sites da internet é que ele usava para ver os canais premium de desporto. Pode ser uma opção, ou não?

sábado, julho 28, 2018

1640. Fobias e almoços ou mais um LTB


V tem algumas fobias, é ele que o diz e eu não tenho como duvidar. Sei que a sua terapeuta e amiga MH conhece algumas, mas as que fazem parte do foro clínico privado, nem ela nem eu as divulgaremos. Dei-lhe a minha palavra. Mas há uma que me dá uma certa graça contá-la, espero que esta o V não a tenha como privada, pois falamos nisso abertamente e fora do âmbito clínico. E lembrei-me disto à hora do almoço, por isso incluí-la no meu LTB. Entrei num snack bar, (ainda se usa esta expressão?) com vontade de comer uma bifaninha e tomar uma bejeca, pedi ao balcão e o senhor solícito e amável, mandou-me sentar que já me atendia. Pelo caminho reconsiderei e achei que iria comer um prego no prato. E, depois da mesa posta, o senhor que há pouco estava ao balcão perguntou-me só para confirmar: É então uma bifaninha no pão e uma imperial, não é? E eu ripostei, Olhe traga-me antes um prego no prato com umas batatinhas fritas, não são das congeladas, pois não?, e uns pickles. E sim traga-me uma imperial. Isso vai demorar um bocadinho mais, informou-me. Não faz mal, respondi. E ali fiquei no bar praticamente vazio, o tipo do balcão que devia ser o patrão e que era também quem atendia às mesas e quem fritava as bifanas, grelhava os pregos e picava os pickles, uma boa meia dúzia de mesas à espera de clientes, um cão deitado no chão junto a uma das mesas, com ar de poucos amigos, assim de uma raça que não conheço, focinho achatado a parecer um tanque de guerra, pelo branco com manchas cinzentas, meio com ar adormecido mas que, na verdade, nunca tirou os olhos de mim. Pacientemente comi o meu prego, sempre, também eu, sem tirar os olhos do cão, num perfeito tête-à-tête,
 mas já com uma saída de emergência fisgada, não fosse o diabo tecê-las e eu à rasca, mas onde é que andará o dono do cão? E foi aí que me lembrei do V.

O V tinha a mania de mudar de emprego, como quem muda de camisa. Não que não se sentisse bem onde trabalhava, presumo que de algumas delas sente ainda hoje saudade, pela forma como fala das mesmas, mas achava sempre que podia não só aprender mais, mas também ser mais valorizado pelo trabalho e pela influência que tinha nas empresas onde trabalhou. Talvez nisto houvesse uma certa dose de narcisismo, mas ele era assim mesmo e a verdade é que, tanto quanto sei, foi sempre bem-sucedido nesta sua pretensão, ou melhor, nesta sua perspetiva de melhoria pessoal no mundo do trabalho. E dai que passava o tempo a responder a anúncios.

Entrou num prédio que, pressupostamente, deveria ter porteiro. O átrio era amplo, tinha um sofá em couro preto, sobre um pavimento de mármore branco, impecavelmente limpo. No balcão, em meia lua imperfeita, deveria existir um porteiro, mas ninguém estava para o atender. Um prédio que parecia deserto, silencioso, quase fantasma. E isso começou de imediato a incomodar V. Subiu ao quarto andar. Carregou no botão do elevador, esperou apenas alguns segundos, as portas abriram-se de par em par, V entrou num elevador todo em aço inoxidável, mais parecendo um elevador de hospital, vazio como era de se esperar, um painel de botões que ia até ao 12º, um subir absolutamente silencioso, num ápice no quarto andar. Tocou a campainha do 4º esquerdo, mas não ouviu o toque. Quase em simultâneo, um subtil click de abertura do trinco, a porta começou a abrir-se paulatinamente sem que ninguém lhe tocasse, V entrou, pediu licença sem obter qualquer resposta e só um novo click de trinco lhe fez notar que a porta se havia fechado nas suas costas. Levantou um pouco a voz, Boa tarde, onde me devo dirigir, mas aquele corredor frio e vazio, não lhe respondeu. Esperou, pelas suas contas duas horas, pela passagem real do tempo não mais de vinte segundos. Uma eternidade! Um senhor, alto, muito mais alto do que o 1m63 de V, trazia pela trela um imponente pastor alemão, de ar ameaçador, de dentes aguçados que fez o favor de mostrar num imenso bocejo. Falando um francês com sotaque de Bruxelas, o senhor que recebeu V, fê-lo entrar numa ampla sala, talvez uns quarenta a sessenta metros quadrados bem medidos, de decoração austera, dois sofás, um aparador, na parede dois quadros, uma pintura de Paula Rego e uma gravura quinhentista de um mapa-mundo de grande qualidade gráfica e riqueza de cores, com uma rosa dos ventos que só por si não deixaria ninguém indiferente à presença daquele quadro e escrito, se não em castelhano, em português arcaico daquele que só vê nos fac-simile das obras de Luís de Camões ou do padre António Vieira. V foi convidado a sentar-se, mas antes que a entrevista para o novo emprego começasse, o eventualmente belga e possível dono do pastor alemão deixou-o só com o seu portentoso animal em guarda. Passaram-se um, dois, três minutos, três anos? Para V, um século, as pernas tremiam-lhe, a serenidade abandonava-o, na rua não passava um carro, não passava uma senhora com o seu saco de compras no Corte Inglès ou na Loja das Meias, um executivo de gabardina e pasta na mão, um homem estátua que regressasse de um dia de estático mister, ninguém de quem se pudesse socorrer, ninguém a quem soltar um grito de socorro, se a sua fobia a cães e ao vazio o fizesse entrar em desespero. Ninguém. Só, numa sala com um cão.

Paguei a conta e saí. Seria igual se em vez de um prego, tivesse sido um bacalhau à Brás, uma económica em tijela de alumínio, dois rissóis e uma carcaça. Desde que a imperial estivesse fresquinha.