Hoje vou escrever sobre
os atravessadores. No meu quotidiano conduzo com frequência pela cidade. Quando
ainda estava no ativo a minha condução era mais de casa para o trabalho e vice-versa.
Como saía cedo e regressava tarde não me dava conta dos atravessadores. Às horas
que potencialmente me cruzaria com eles, já ou ainda, não havia praticamente
atravessadores. Mas os atravessadores não são uma raça única. Há muitas
espécies de atravessadores. Por exemplo,
Os
sinaleiros – mais minuto, menos minuto, eles vão atravessar. Apesar
de estarem no local certo para atravessar a rua ou a estrada não o fazem. Nem
sequer colocam o pé na passadeira. Fazem sinal com o braço para que os
automóveis, as motas, os autocarros e até as bicicletas passem primeiro. Mesmo
que o condutor pare para lhe dar passagem, eles recusam determinantemente
fazendo por vezes o gesto de virar as costas à passadeira, do tipo, Estás a ver
que eu não vou mesmo atravessar? Só
quando não vem trânsito, nem de um lado, nem de outro, eles atravessam. Mas
atravessam sempre na passadeira.
Os
tá bem, tá – colocam-se na passadeira, hesitam em colocar o pé
na dita, mas fazem-no sempre com os olhos no condutor. Em ruas de dois sentidos
só atravessam se no sentido contrário ao do automobilista que, entretanto,
parou para que o atravessador atravessasse, não se vislumbre outro carro. Nem
parado. Depois, quando parece estar tudo em segurança passa por detrás do carro
que estava parado à espera que ele atravessasse, não vá o Diabo tecê-las.
Os
espera aí – também esperam. Esperam sempre que o condutor pare.
Entram a medo na passadeira e sempre com uma mão em posição de espera aí. Fazem
todo o atravessamento com a mão nessa posição e, obviamente, a gente espera.
Espera o atravessamento total como mandam as regras e como manda a mão do
espera aí
Os
diagonais – Para os diagonais a distância mais curta entre duas
paralelas não é a perpendicular. Vão de um passeio ao outro em diagonal. Entram
na passadeira para iniciar o atravessamento, mas ainda não chegaram a meio e já
estão fora dela e continuam o atravessamento como um direito adquirido, fazendo mais de metade do percurso fora da passadeira. Vê lá se te despachas,
pensam os tipos como eu, outros gritam-lhes mesmo pela janela: É para hoje ou para amanhã? Quase sempre no
formato Épra hoje ó prámanhã, caralho?
Os
a prioridade é minha – São geralmente putos ou miúdas acabados
de sair das aulas, quase sempre em grupo, iniciam o atravessamento como se a
passadeira fosse a continuação do passeio, não olham nem para esquerda nem para
a direita, Quero lá saber se o gajo me atropelar a culpa é dele, e a meio da
passadeira ainda param para mais uma brincadeira, para dar um calduço a outro, para continuarem a cena
de bullying ou simplesmente abrandam para darem um beijo à pita com quem vêm
atracados desde o portão da escola.
Os
Olá estás bom? (ou boa) – é uma espécie que tem um tipo de
comportamento normalmente imprevisível, pois o condutor não adivinha que isso
vai acontecer e raramente antecipa. O condutor de mota ou de bicicleta
normalmente faz-lhes uma rasante, o do autocarro dá-lhes uma buzinadela de os
fazer dar um salto de susto, cuja razão, a do motorista, claro, fica logo
assegurada pelo comentário de dois ou três passageiros que não se coíbem de dizer
Olha para aquela besta e outros impropérios mais ou menos pouco educados mas
não muito malcriados pois vão outras pessoas a ouvir e os automobilistas soltam
um tremendo foda-se. Eu não. Eu costumo dizer: já estava à espera desta: Mas
não estava nada. Ah! Quem são eles? São os que a meio da passadeira ouvem
chamar: Oh Rita!, olham para trás e lá está a Irene, a filha da tia Isaura
florista que já não via há mais de uma semana, coitadinha, disseram-lhe que a
mãe tinha partido um pé, ou Ó Jaquim, vais com pressa? e lá está o Ernesto no
outro lado da rua com A Bola debaixo do braço e, de repente, a meio do atravessamento voltam
para trás para ir dar dois beijos à Irene ou um bacalhau ao Ernesto: Aquilo
ontem é foi uma jogatana do caraças, pá! Ou então voltam para trás a meio do
atravessamento apenas porque se esqueceram de comprar a linha na capelista, que
faz falta para acabar o naperon logo à tarde.
Os
corredores e o para arranca – Os corredores não atravessam nas
passadeiras. Os corredores atravessam em qualquer sítio e mal veem o veículo aproximar
desatam numa correria, sem olharem para a direita, sem saberem se vem lá outro,
deixa é fugir deste e depois quando ouvem a buzinadela do outro que vem em
sentido contrário, estancam de repente no meio da rua, pedem desculpa, desatam
a correr de novo, cheios de artroses, uma mão no peito que o coração já não
está para isso e ficam no lado de lá a respirar ofegantes e a limpar o suor com
o lenço de mão, mas pronto desta já estou safo, para a próxima atravesso na
passadeira que já não tenho idade para estas corridas.
Os
pipis, os étnicos, as velhas com os netos pela mão, o tipo com a bengala –
Nunca atravessam nas passadeiras. Mesmo que a passadeira esteja a menos de
cinco metros, ou a menos de três. Os pipis, assim com ar de malandrecos como
que a dizer ao condutor Eu atravesso onde eu quiser, pá, os étnicos que têm o
direito conforme a etnia de atravessar fora das passadeira, porque o
automobilista que ameaça não parar com certeza que é racista ou então se o étnico
for outra também é racista e pior é que não grama ciganos, a avó que passa com
o neto ou a neta pela mão e claro Eles que parem não veem logo que é uma
criança e o velhote da bengala para quem aqueles três metros até à passadeira
são um sacrifício do caneco.
Os
passeantes – podem incluir-se aqui também os putos das escolas, mas
não exclusivamente ou se calhar nem principalmente, mas também, normalmente sozinhos
ou em par. Assim que entram na passadeira, que se lixem os gajos dos carros.
Afinal não passam de uns burgueses de merda. Eles a cavalo e eu é que vou aqui
a pé. Demoro o tempo que eu quiser e pronto. E pronto, digo, eu, lá vai aquele
a passear na avenida.
Os
tecnológicos – Hoje são quase todos e englobam também quase
todas as categorias que estão acima referidos, exceto os corredores. Atravessam
a passadeira ou fora dela com o telemóvel na mão. Vão a telefonar, a mandar mensagens,
a consultar o Fb ou o Instagram, a jogar, mas caramba, não podiam fazer isso
sem irem ao mesmo tempo a empurrar o carrinho do bebé?
Os
normais – Ah pois, também há normais. Não os sei descrever
porque nem dou por eles.
E aqui estão os atravessadores.
Se encontrarem algum de uma espécie não descrita, avisem-me em que rua foi para eu ir lá visitá-los. Sou ávido de conhecimento.
1 comentário:
Há uns anos atrás quando um carro me deu uma valente panada e me mandou para o hospital (atravessando eu a passadeira cumprindo o preceituado e como mandam as regras), deixei de atravessar passadeiras com os dois pés. Ou seja, atravesso ao pé coxinho. É mais rápido e os condutores páram forçosamente porque não me incluo em nenhuma dessas categorias.
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