sexta-feira, janeiro 13, 2006

902. Vou-me atrever

Em Caxias, Maranhão no Brasil nasceu no dia 10 de Agosto de 1823, um dos maiores poetas da Língua Portuguesa de seu nome António Gonçalves Dias. Quase como inevitável, Gonçalves Dias era filho de um português, transmontano e de uma mestiça brasileira. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, integrou o grupo de poetas designado “medievalistas”. Um romântico que bebeu a influência dos românticos portugueses, franceses, ingleses, espanhóis e alemães. Publicado em 1843, “A canção do Exílio” é um dos mais belos poemas da língua portuguesa. Referido por Alexandre Herculano em artigo encomiástico devido às suas “Poesias Americanas”, escreve também um ensaio filológico onde demonstra aos seus censores (dos quais se haveria de vingar com a publicação das “Sextilhas de frei Antão”) o seu profundo conhecimento da língua portuguesa. Editado no Brasil e em Portugal foi na Alemanha que o livreiro-editor Brockhaus editou os Cantos, os primeiros quatro cantos de Os Timbiras, compostos dez anos antes, e o Dicionário da língua tupi. Com vasto curricullum na área da investigação linguística presidiu também a uma Comissão Cientifica de Exploração, tendo percorrido os mais importantes rios do norte do Brasil. Morre no naufrágio do navio Ville de Boulogne, do qual aliás foi a única vítima, quando regressava ao Maranhão proveniente de Paris, no dia 10 de Setembro de 1864.

Resumo livre (quiçá abusivo) da biografia de Gonçalves Dias, escrita por Luciana Batista, também ela nascida em Caxias, MA e de quem me orgulho de ser amigo. E eu vou-me atrever a publicar, de Gonçalves Dias, um dos seus mais belos e profundos poemas.

Se se morre de amor!

Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente.
Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros !
Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora.
Compr’ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Se tal paixão enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d’êxtasis puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!
Esse, que sobrevive à própria ruína,
Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneiando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!

A. Gonçalves Dias

Sem comentários: