sábado, setembro 17, 2005

797. Os desmancha-prazeres

Era grande a algazarra. Passavam carros com altifalantes nasalados e as crianças corriam atrás. No meu tempo ainda corriam atraz mas o z perdeu-se e foi substituído por um assento. Perdem-se algumas coisas pelo tempo fora e o z não é mais do que um pormenor. Perde-se a alegria de correr atrás daqueles altifalantes que anunciavam os irmãos Avelino que atravessariam o largo (mais de 50 metros) sobre o arame e sem rede. Que anunciavam pai e filha numa arrojada aventura sobre potentes motos, de olhos vendados em acrobática e perigosa demonstração de sangue-frio e de desafio à gravidade. Éramos pequenos não sabíamos o que era a gravidade, mas sabíamos o que era o Poço da Morte. Perde-se ao longo do tempo o prazer de ver os saltimbancos, franzinos, mais costelas que carne em exercícios de delicioso contorcionismo e os cospe fogo. Os carros enfeitados com grandes cartazes em que a figura principal era o palhaço, cara pintada, uma farta cabeleira colorida, toda aos caracóis e uma bola vermelha no nariz. Circo Cardinalli , as mais ferozes feras do mundo do circo, hoje ás 21 horas, não perca na sua localidade. Espectáculos até domingo com entrada grátis às damas às quintas-feiras. Não havia damas no meu bairro só, mulheres. Mesmo assim entravam gratuitamente às quintas-feiras. Era o circo e a gente a correr atrás daquele homem que parece que fala pelo nariz, num carro enfeitado com fotografias de palhaços alegres e tigres de ar ameaçador. Distribuíam papéis com as mesmas fotografias e quem apanhasse mais papéis, ganhava. O que ganhava não interessa, só interessa que ganhava.
Passam os mesmos carros hoje pela minha rua, não passam os mesmos carros, passam os mesmos altifalantes, o mesmo homem com a voz a sair pelo nariz. Hoje, na sua localidade a apresentação dos candidatos. Já não distribuem só prospectos, há também sacos de plástico e esferográficas. Os carros continuam a trazer as fotografias, mas ninguém corre atrás deles. Perde-se a noção de que os palhaços, agora, somos nós. Perde-se ao longo dos tempos a alegria de ver os irmãos Avelino a caminhar sobre o arame quando agora somos nós que andamos constantemente sobre o arame. Ou que nem saltimbancos a fazer contorcionismos para podermos sobreviver. Cada vez mais com as costelas à mostra. Mas o circo continua. Nunca tão apalhaçado como hoje.

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