V tem algumas fobias, é ele
que o diz e eu não tenho como duvidar. Sei que a sua terapeuta e amiga MH
conhece algumas, mas as que fazem parte do foro clínico privado, nem ela nem eu
as divulgaremos. Dei-lhe a minha palavra. Mas há uma que me dá uma certa graça
contá-la, espero que esta o V não a tenha como privada, pois falamos nisso
abertamente e fora do âmbito clínico. E lembrei-me disto à hora do almoço, por isso
incluí-la no meu LTB. Entrei num snack bar, (ainda se usa esta expressão?) com
vontade de comer uma bifaninha e tomar uma bejeca, pedi ao balcão e o senhor
solícito e amável, mandou-me sentar que já me atendia. Pelo caminho reconsiderei
e achei que iria comer um prego no prato. E, depois da mesa posta, o senhor que
há pouco estava ao balcão perguntou-me só para confirmar: É então uma bifaninha
no pão e uma imperial, não é? E eu ripostei, Olhe traga-me antes um prego no
prato com umas batatinhas fritas, não são das congeladas, pois não?, e uns
pickles. E sim traga-me uma imperial. Isso vai demorar um bocadinho mais,
informou-me. Não faz mal, respondi. E ali fiquei no bar praticamente vazio, o
tipo do balcão que devia ser o patrão e que era também quem atendia às mesas e
quem fritava as bifanas, grelhava os pregos e picava os pickles, uma boa meia dúzia
de mesas à espera de clientes, um cão deitado no chão junto a uma das mesas, com
ar de poucos amigos, assim de uma raça que não conheço, focinho achatado a
parecer um tanque de guerra, pelo branco com manchas cinzentas, meio com ar
adormecido mas que, na verdade, nunca tirou os olhos de mim. Pacientemente comi
o meu prego, sempre, também eu, sem tirar os olhos do cão, num perfeito
tête-à-tête,
mas já com uma saída de emergência fisgada,
não fosse o diabo tecê-las e eu à rasca, mas onde é que andará o dono do cão? E
foi aí que me lembrei do V.
O V tinha a mania de
mudar de emprego, como quem muda de camisa. Não que não se sentisse bem onde
trabalhava, presumo que de algumas delas sente ainda hoje saudade, pela forma
como fala das mesmas, mas achava sempre que podia não só aprender mais, mas
também ser mais valorizado pelo trabalho e pela influência que tinha nas
empresas onde trabalhou. Talvez nisto houvesse uma certa dose de narcisismo,
mas ele era assim mesmo e a verdade é que, tanto quanto sei, foi sempre bem-sucedido
nesta sua pretensão, ou melhor, nesta sua perspetiva de melhoria pessoal no
mundo do trabalho. E dai que passava o tempo a responder a anúncios.
Entrou num prédio que,
pressupostamente, deveria ter porteiro. O átrio era amplo, tinha um sofá em
couro preto, sobre um pavimento de mármore branco, impecavelmente limpo. No
balcão, em meia lua imperfeita, deveria existir um porteiro, mas ninguém estava
para o atender. Um prédio que parecia deserto, silencioso, quase fantasma. E
isso começou de imediato a incomodar V. Subiu ao quarto andar. Carregou no
botão do elevador, esperou apenas alguns segundos, as portas abriram-se de par
em par, V entrou num elevador todo em aço inoxidável, mais parecendo um
elevador de hospital, vazio como era de se esperar, um painel de botões que ia
até ao 12º, um subir absolutamente silencioso, num ápice no quarto andar. Tocou
a campainha do 4º esquerdo, mas não ouviu o toque. Quase em simultâneo, um
subtil click de abertura do trinco, a porta começou a abrir-se paulatinamente
sem que ninguém lhe tocasse, V entrou, pediu licença sem obter qualquer
resposta e só um novo click de trinco lhe fez notar que a porta se havia
fechado nas suas costas. Levantou um pouco a voz, Boa tarde, onde me devo
dirigir, mas aquele corredor frio e vazio, não lhe respondeu. Esperou, pelas
suas contas duas horas, pela passagem real do tempo não mais de vinte segundos.
Uma eternidade! Um senhor, alto, muito mais alto do que o 1m63 de V, trazia
pela trela um imponente pastor alemão, de ar ameaçador, de dentes aguçados que
fez o favor de mostrar num imenso bocejo. Falando um francês com sotaque de
Bruxelas, o senhor que recebeu V, fê-lo entrar numa ampla sala, talvez uns quarenta
a sessenta metros quadrados bem medidos, de decoração austera, dois sofás, um
aparador, na parede dois quadros, uma pintura de Paula Rego e uma gravura
quinhentista de um mapa-mundo de grande qualidade gráfica e riqueza de cores, com
uma rosa dos ventos que só por si não deixaria ninguém indiferente à presença
daquele quadro e escrito, se não em castelhano, em português arcaico daquele
que só vê nos fac-simile das obras de Luís de Camões ou do padre António Vieira.
V foi convidado a sentar-se, mas antes que a entrevista para o novo emprego
começasse, o eventualmente belga e possível dono do pastor alemão deixou-o só com
o seu portentoso animal em guarda. Passaram-se um, dois, três minutos, três
anos? Para V, um século, as pernas tremiam-lhe, a serenidade abandonava-o, na
rua não passava um carro, não passava uma senhora com o seu saco de compras no
Corte Inglès ou na Loja das Meias, um executivo de gabardina e pasta na mão, um
homem estátua que regressasse de um dia de estático mister, ninguém de quem se
pudesse socorrer, ninguém a quem soltar um grito de socorro, se a sua fobia a
cães e ao vazio o fizesse entrar em desespero. Ninguém. Só, numa sala com um
cão.
Paguei a conta e saí. Seria
igual se em vez de um prego, tivesse sido um bacalhau à Brás, uma económica em
tijela de alumínio, dois rissóis e uma carcaça. Desde que a imperial estivesse
fresquinha.