992. Deslocação
Uma nuvem de cheiros atravessou a casa e penetrou-o no estremunhado sono que ainda lhe restava. Um agradável odor, misto de café e torradas, anunciava-lhe a presença de alguém na cozinha, onde um tiritar de colher beijando a chávena confirmava um, agora, leve receio. Estendeu o braço esquerdo perpendicularmente ao corpo e obteve a certeza da primeira desconfiança. Ela já lá não estava, apenas um quase vazio preenchido por uma almofada. Do outro lado com uma ligeira apalpadela descobriu os óculos e colocou-os. Depois abriu os olhos e pestanejou várias vezes como que a dar os bons dias ao raio de luz que atravessava a frincha da janela mal fechada. Desceu cuidadosamente da cama (a malvada dor de coluna acompanhava-o há largos anos), mal acordado, olhou em volta e descobriu na cadeira onde tinha deixado de véspera o roupão em cetim azul-escuro que ela lhe tinha oferecido no início deste verão. Por uns momentos ficou a pensar na importância que tem uma cadeira de quarto, no seu papel de fiel depositária e da tranquilidade de um objecto que durante anos não sai do mesmo local. Palermices, pensou, será a idade… De repente alteraram-se-lhe os humores (terá descoberto que dia era hoje?). Arrastou os pés até estes se enfiarem nos chinelos, quase com uma precisão matemática. Pudera. Durante mais de quarenta anos colocava os chinelos de quarto sempre no mesmo sítio e sempre que se levantava era a segunda coisa que procurava. A primeira eram os óculos depositados sobre o livro da noite na mesa de cabeceira. Pegou no roupão, seguiu a trilha dos cheiros e observou-lhe a nuca prateada na entrada da porta da cozinha. – Bom dia!, disse-lhe ela, mal o pressentiu. - Bom dia, respondeu-lhe acariciando-lhe o cabelo e debruçando-se para lhe beijar o pescoço. - Acho que adormeci, como que a desculpar-se. Porque não me acordaste? Hoje vou chegar atrasado. Maldito vício o de adormecer agarrado aos livros. Esta noite, juro, apagarei a luz mais cedo e serei eu quem fará o pequeno-almoço. Ela rodou a cabeça, olhou-o com ternura nos olhos, pediu-lhe que se sentasse no lugar em frente e respondeu-lhe. – Agora já não precisas. Uma pequena lágrima correu-lhe, inevitável, pelo rosto. Pela primeira vez, desde os seus vinte anos que não tinha de ir trabalhar à segunda-feira. E vieram-lhe à memória, numa catadupa de imagens, os anos da fábrica que acabara de fechar. Um macaréu subiu-lhe corpo acima num curso percurso do estômago ao peito. Baixou a cabeça, e começou a barrar o pão com doce de cereja. Uma segunda lágrima caiu-lhe na chávena de café.
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