996. Roteiro
O galo cantou quatro vezes, mas nem teria sido preciso. Ela estava atenta e pulou da cama ao primeiro có-có-ró-có. Na véspera tinha-se deitado cedo, mais ou menos quando o noticiário da TVI começava a dar uma reportagem de futebol. A bola não lhe interessava para nada e, o mais importante já ela tinha visto.
Isto foi no Alentejo, no ano de 2006.
Abriu a porta do galinheiro e ao mesmo tempo que, entre cacarejos, as galinhas saíam para a rua, ela recolhia os primeiros ovos da manhã, quase todos eles ainda quentes. Eram bem mais de duas dúzias. Depois foi ela quem saiu, ligou a bomba do poço e começou a regar a horta. As alfaces, a couve-galega, os tomateiros, os pepinos e as várias leiras de nabiças não podiam deixar de beber logo pela manhã. Eram o seu sustento, mas hoje não haveria colheita. Amanhã, bem cedo, logo ela iria acartar mais umas cestas de legumes onde os venderia na vila e recolheria os magros cobres da sua subsistência. Hoje era um dia especial e por isso também não se importava de ter de gastar mais água. Hoje iria tomar banho completo. E vestiria o mesmo vestido preto e cuidaria melhor do lenço da cabeça e até as meias e os sapatos seriam os mesmos com que vai à missa. Hoje era um dia especial e ela também (lá no seu íntimo não sabia bem o que isso queria dizer) achava que era uma excluída. E o Senhor Presidente iria vê-la lá no meio da multidão, talvez até lhe acenasse e, com sorte, coisa que ela nunca teve na vida, vinha-lhe sempre à memória o ter ficado viúva com 30 anos de idade e já três filhos, um dois quais ainda de colo, talvez, com sorte pensava ela, quem sabe lhe desse um beijo.
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