sexta-feira, junho 23, 2006

994. Tiramissus e pasteis de nata

Ricardo tinha terminado um curso superior. Via negro o seu futuro. Não negro como um carvoeiro vê os seus dias, porque essa é a cor do seu futuro. Nem negro como o fato do gato-pingado pois essa é a cor do seu presente. Vê negro como quem espreita aquele túnel do comboio, sem comboio. Sem nenhuma luz lá no fundo.
Isto foi em Portugal, na cidade de Lisboa, em 2006.
Ricardo pegou no Correio da Manhã que estava em cima da mesa do café para ler os classificados. É um café de bairro, do bairro onde vive, onde conhece toda a gente e toda a gente o conhece desde miúdo. Foi por isso que teve de perder uns minutos a conversar sobre as prestações da selecção no Mundial com o Sr. Joaquim, o dono do talho onde a D. Henriqueta, a mãe, lhe compra o inevitável bife diário do almoço Também é porque conhece toda a gente lá da zona que a Fernandinha, uma solteirona militante, se senta sempre na mesa dele para beber o galão e comer a tacinha de tiramissu (*) diária. E para ouvir o humor sempre brejeiro de Ricardo. A Fernandinha fica corada com a malandrice sub-reptícia de Ricardo, mas pela-se por ouvi-lo. Depois deve sair dali a pensar num casamento que nunca conseguiu ou que nunca quis e quiçá a tentar desvendar se a culpa é dela ou do tiramissu. É que na mente de Fernandinha tem sempre de haver um culpado. O Ricardo acha que não, que nem sempre tem de haver um culpado. E hoje foi com Fernandinha que dissertou sobre o tema, ainda com o Correio da Manhã na mão. Deu-lhe a ler (enfatizando algumas passagens com leitura simultânea em voz alta), aqueles artigos que falavam de uma suspeita venda de terrenos ao Metro do Porto, numa história mal contada, lá para os lados de Gondomar, uma outra que falava de um tipo que outrora foi secretário pessoal de um conhecido apresentador de televisão e que dizia que este tinha fontes privilegiadas no processo Casa Pia, outra ainda que dizia que o processo Apito Dourado estava mais uma vez suspenso. A Fernandinha, decepcionada por não descortinar culpados, pagou a sua despesa e gentilmente a bica de Ricardo. Saiu, como sempre, pensando que se calhar culpados só mesmo os tiramissus (malditos homens que não gostam de gordas), pois no meio daquelas notícias havia outra que dava conta de uma intensa actividade da justiça italiana sobre a corrupção no futebol transalpino. Ricardo, devorava agora um pastel de nata enquanto voltava aos classificados. Pelo olhar distante, supõe-se que estaria a culpabilizar-se por não se ter licenciado em Engenharia da Corrupção.


(*) para quem estiver interessado, encontram-se na Internet várias receitas de tiramissu.

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