sábado, junho 05, 2004

421. Sem título

Às vezes ponho-me a pensar na superficialidade dos textos que escrevo. Gostaria de ser capaz de escrever algo profundo, algo literário. Transmitir paixões, alentos, desalentos. Ser capaz de, num momento de inspiração, criar obra. E depois de poder ter muitos momentos. Usar palavras difíceis, vocabulário rico. Gostaria de ser capaz de inventar uma história ter um tema, desenvolvê-lo. Ou então, ser capaz de escrever um diálogo que a mim me dissesse muito e a quem lesse dissesse pouco, ou que me chamassem louco, depressivo, inepto, corrosivo, malcriado, pantomineiro, fingidor. Já pensei em escrever um conto de fadas, mas cada vez menos acredito em fadas, em duendes, nos gnomos da floresta, nos druidas. Em tempos comecei a escrever um ensaio, estava a sair-me bem, mas a situação era tão experimental, que lhe perdi a hipótese de escrever o fim. Um texto sem fim, não é uma boa coisa. O fim é a melhor coisa de quem quer realizar algo. Tudo se faz com um fim, tudo tem por fim algo. Desisti antes do fim. E poesia? Porque não escreves poesia? Eu tento,

No teu olhar vejo estrelas
Não são pupilas, são estrelas.
Não digas que exagero, porque não é de uma constelação que falo.
Afinal são só duas
Iguais
À mesma distância de anos-luz.
No teu olhar vejo estrelas.

Não tenho nada contra a poesia. Mas quantos poetas é que não compararam os olhos de alguém a estrelas? Poderia ter comparado a ouriços, a berlindes, à bola preta número oito de um jogo de snooker. Mas quantos não fizeram já essas comparações?
Metáforas, parábolas, hipérboles, mistura as figuras de estilo com a matemática, conta uma história com números, aplica-lhe um ou dois princípios da Física. Que tal o terceiro principio da termodinâmica? Podes construir uma boa história.

Fico a pensar nisso, mas não sou físico. Nem metafísico. E o pior é que também não sou filósofo. Se eu fosse filósofo estava autorizado a pensar. Diria uma frase e faria os outros pensarem. Mas se eu disser, penso logo existo, todos se vão rir. Porque isto já foi dito.

Não tenho obrigação de escrever nada. Aliás eu não tenho obrigações, excepto a de pagar os impostos. Tudo o resto eu faço porque gosto. Mas gostar e não ser capaz de verbalizar causa-me ansiedade.

Já sei, acho que vou escrever sobre o tempo.

No teu olhar vejo duas gotas
Não são lágrimas, é chuva.
Não digas que exagero, não é de uma superfície frontal que falo.
Afinal é apenas orvalho
Humidade
Amanhã o sol brilhará
No teu olhar verei uma só estrela.

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