sexta-feira, julho 30, 2004

521. Redacção – Cartas

Eu gosto muito de cartas. Quando era miúdo, a minha prima Maria foi a Sobral de Monte Agraço passar férias com a madrinha dela. Durante essa época escreveu-me várias vezes. Era para mim uma alegria pois nunca tinha recebido uma carta de ninguém e deixava-me em tal estado de ansiedade que à hora do carteiro lá estava eu no pátio expectante, ansioso, de coração apertadinho, nos meus seis anos de idade, para receber uma carta. Ficava triste, todo o dia, se não havia nada para mim. Depois, bem, depois tive vários anos sem receber cartas, até o  meu pai ter ido passar aqueles nove meses na Suécia, numa especialização profissional. Então era rara a semana que não havia uma carta para mim. Cartas de amor, só as recebi quando, por motivos profissionais, fiquei quase seis meses fora do país. Não havia Internet e o telefone era caro. Quando as recebia, eram sempre aos montes, pois a distribuição só se fazia duas a três vezes por viagem. Pelo facto de as não receber não estou acostumado a escrever cartas. Logo hoje, a minha professora havia de se lembrar de pedir, como redacção, que escrevêssemos uma carta. Eu vou tentar.

Almada, 30 de Julho de 2004
 
Caro Vitor

Vai ser difícil escrever-te, uma vez que tenho pouquíssimo para dizer. Todos os dias estou contigo pelo que, o que temos a dizer um ao outro fazê-mo-lo cara a cara. Conheço-te há muito tempo mas quase todos os dias me surpreendes. Não entendo como é que na tua idade e com a já interessante história de vida que tens, ainda és capaz de ter ilusões. Eu sei que sempre andaste a raiar a utopia. Acreditaste num país sem classes, num mundo de paz e fraternidade, lutaste desalmadamente e caíste do sonho sem teres sequer uma para-quedas robusto. Sei que te magoaste, como te magoas nas coisas simples do dia a dia. Apaixonas-te facilmente pelas coisas, pelas pessoas, pelas plantas, pelos animais e apenas dos animais não tens razão de queixa. Eu sei que por vezes até com as flores te desiludes. Murcham mais depressa do que tu estavas à espera. Levas algumas bofetadas para acordares, mas é assim que és. Depois, passas alguns dias tristes, invadido por uma nostalgia cretina e burra e responsabilizas-te pelo que não acontece. Não penses que és tão forte assim, que podes comandar o que quer que seja só com o pensamento. É preciso mais acção, mais arrojo, mais risco. Estás a passar uma fase que não é a melhor, mas faz como em outras vezes fizeste. Calca forte por baixo dos teus pés todos os maus momentos e sorri. Ri mesmo, dá aquela gargalhada que costumas dar quando ouves ou contas uma piada, leva as tuas utopias, as tuas paixões, os teus encantos e desencantos como se fossem apenas uma piada e sai daí. Amanhã é um novo dia, o sol vai raiar de novo. Conta contigo próprio, só tu te podes ajudar. Não vás atrás das tretas dos amigos. Tens sempre, sempre um monte deles nas tuas melhores horas. Tu sabes do que é que te estou a falar. Quem sabe, um dia destes, te volte a escrever de uma forma mais alegre? Quem sabe… O sol voltará a brilhar e isso ambos sabemos.
 

PS. Senhora professora, depois da introdução resolvi escrever uma carta a mim próprio. Sempre usufruo duplamente, escrever e receber.

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