sexta-feira, setembro 03, 2004

561. Quatro dias

“Sôzé”, a minha voz tremia um pouco. Nesse tempo os rapazes pediam autorização para namorar. Andei-me a preparar uns quatro ou cinco dias. Deve vir desse tempo a minha mania de falar com o espelho. “Sôzé, venho aqui para lhe dizer que namoro com a sua filha”. “Não!”, gritava-me o espelho. “Assim não, rapaz. É muito directo, além de que não se trata de um pedido. Isso é uma afirmação”. Ficava desarmado. Tanto treino para nada. “Sôzé, como o senhor sabe…” “Não!”, interrompia-me de imediato o espelho, “Se ele sabe o que é que vais lá fazer?”. O dia aproximava-se e eu sem saber o que dizer. Afinal de contas era a primeira vez que eu enfrentava o pai da namorada. Já tínhamos falado do Benfica e do Sporting, ele já me tinha visto várias vezes chegar da escola com a filha ao lado, ele e o meu pai jogavam juntos às cartas, mas eu nem sabia se ele imaginava que eu lhe namorava a filha. “Sôzé, não sei se sabe por é que eu pedi para falar consigo…” . “Não!”, de novo o espelho, inflexível. “Vamos pôr os pontos nos is, rapazinho”. Finalmente, esperei que ele me desse uma dica. Até aqui sempre me atalhava o discurso, sempre me criticava a forma, sempre me apagava o conteúdo. “Em primeiro lugar, pára com essa história de sôzé. Há uma certa formalidade no acto. Deves começar com Senhor José. Não deves entrar directo no assunto. Arranja uma conversa de introdução que o deixe bem disposto e receptivo e, quando ele estiver com as guardas em baixo, vais direito ao assunto”. Uma lâmpada acendeu-se dentro da caixinha dos neurónios. Afinal de contas o Sporting tinha ganho na semana anterior ao meu Glorioso e o pai dela era lagarto. Ia ser doloroso, mas…

- Sôzé, a voz tremia, então lá ganharam no Domingo hein? (não consegui evitar o Sôzé; falar de futebol e começar com senhor José, não me parecia compatível, sei lá, não me dava jeito).
- É pá, aquilo é que foi uma vitória – não disse mais nada, mas viu-se-lhe um brilhozinho nos olhos.
Homem de poucas falas, não me deu hipóteses de continuar a desenvolver o fait-divers preparado com todo o cuidado. Naquele momento, apeteceu-me sair, dirigir-me ao espelho e dar-lhe uma daquelas descomposturas que ele nunca mais esqueceria por muitos anos que vivesse. No entanto, apenas em pensamento, o mandei bugiar.
- Sôzé, o senhor já me tem visto várias vezes com a sua filha. Eu e a Maria, gostamos um do outro. Não gostaria que o senhor viesse a saber de outra maneira. Foi por isso que pedi para falar consigo. E para lhe pedir permissão para vir cá a casa, namorar com ela – tudo seguido, em rajada, sem respirar e com a voz a sumir-se a cada sílaba que passava.

Nesse tempo ainda se pedia ao futuro sogro, autorização para namorar. Todos estes anos passados e ainda namoramos. Faltam 4 dias.

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