604. Conto (VII)
Os membros da tribo só saíam da aldeia por dois motivos. Caçar e, quando se tornava necessário, iniciar o ritual do casamento. Era da tradição que qualquer jovem da tribo, antes de casar, fosse desvirginada por um “estrangeiro”. Por um lado, a jovem nunca seria acusada pelo futuro marido de que tivera tido um romance antes com alguém do mesmo grupo. Isso diminuía drasticamente as relações de desconfiança. Por outro lado, uma vez que a cerimónia era pública, haveria a certeza que a jovem era virgem antes do casamento. Desta vez, o estrangeiro escolhido fora eu. Quando a jovem parou de lacrimejar, respirei fundo. Abstraí-me da plateia e fiz amor com ela. Para ser preciso, o acto durou apenas o tempo de a desflorar. Uma ladainha ecoou em todo o anfiteatro e como que por magia, as nuvens, que desde há horas cobriam os céus, desapareceram e o luarejar misturou-se com a luz dos archotes. Foi um acto lancinante. Para mim, por me ter prestado a tão lapuz ritual. Para a implume jovem, porque o seu rosto se contorceu de dor no momento da penetração. Quando a ladainha que as anciãs entoavam em uníssono terminou, o chefe ergueu alto o lábaro com as armas da tribo - um falcão com focinho de jacaré. Numa lemniscata desenhada no chão, onde num dos círculos me sentei e, no outro, se sentou o futuro noivo, o tratado que antes haveria assinado com sangue, foi-nos lido em voz alta, por uma espécie de feiticeiro. Teria de ficar na aldeia até que a gravidez da jovem se consumasse.
(continua)
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