segunda-feira, maio 17, 2004

370. Luar

Às vezes, a esta hora, quando o início da noite se prepara para me dar um banho de negro e luz de tungsténio olho a janela e sobe no meu peito uma vontade de outras coisas. Uma vontade de fazer não sei o quê, um vazio numa bolsa cheia de coisas de que tenho vontade. E quero escutar uma música que não sei qual é. Abro o armário, folheio, como se fosse um livro já lido, todas as páginas de CDs uma a uma, sopro uma poeira teimosa que resistiu à última flanela, como se não o ouvisse há muito, renuncio, ataca-me a nostalgia do vinil. Estupidamente tento descobrir um disco que já não tenho, há muito que desapareceu, não faço a mínima ideia se o emprestei. E lembro o “meu” Alentejo, as luzes da companhia apagadas e aí sim uma inundação de estrelas em noite que não faz luar. Mas o calor de hoje é mais intenso e os meus luares de Agosto rapidamente ofuscam as constelações lá longe, mesmo aquelas que na semana passada eu apontava, vê filha aquela é Orion, olha como se vê tão bem. E de repente, um clique, Catulo da Paixão Cearense, na voz de Paulo Tapajós, Paulinho Tapajós, talvez o primeiro disco que tive de música sertaneja, aquele “xorinho” do nordeste brasileiro onde nunca fui, mas de onde me chamam de “quirido” de onde me sinto ser rei. “ó meu rei” você nunca veio no Brasil? Nem sabe o que está perdendo. Quando a lua me chamar, volto ao Alentejo.

Não há, ó gente, ó, não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó, não
Luar como esse do sertão

Ó, que saudade do luar a minha terra
Lá na serra branquejando folhas
secas pelo chão
Esse luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade
Do luar lá do sertão
Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata
Prateando a solidão
E a gente pega na viola que ponteia
E a canção e a lua cheia
A nos nascer no coração

Não há, ó gente, ó, não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó, não
Luar como esse do sertão

Coisa mais bela neste mundo não existe
Do que ouvir um galo triste
No sertão se faz luar
Parece até que alma da lua
É que diz, canta
Escondida na garganta
Desse galo a soluçar

Ah, quem me dera
Eu morresse lá na serra
Abraçado a minha terra
E dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina
Onde a tarde a sururina
Chora a sua viuvez

Não há, ó gente, ó, não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó, não
Luar como esse do sertão

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